quinta-feira, 21 de agosto de 2014

NOTAS DE LEITURA - RETORNO Á HISTORIA DO PENSAMENTO CRISTÃO, J. GONZALEZ

Se a Reforma protestante do século XVI nos ensinou algo, foi a necessidade de retomar constantemente às fontes de nossa fé. Os reformadores descobriram em seus estudos das Escrituras que, de muitas formas, a fé recebida de seus antepassados havia se esquecido de alguns dos elementos básicos da fé bíblica e deturpado outros. Quando anunciaram suas descobertas, foi-lhes respondido que o que diziam se opunha à tradição da igreja.

  • Não é a palavra de Lutero que permanece para sempre, mas a Palavra que Lutero estudou e procurou expor e proclamar. Não existe tradição humana alguma que possa conter essa Palavra nem se equiparar a ela.
  • A igreja vive da Palavra de Deus, como Israel no deserto vivia do maná cotidiano. Quando a igreja deixa de se alimentar dessa Palavra, simplesmente deixa de ser a igreja.
  • Portanto, a grande tarefa que se impõe à nossa geração — a tarefa que se impõe sempre a cada geração cristã — é nos aproximar novamente das Escrituras para descobrir o que Deus tem a nos dizer hoje nelas.
  • O passado, não importa o quanto nos esqueçamos disso, continua vivendo em nós e contribui para determinar o que somos e o modo como somos.
  • ...todos lemos a Bíblia através de óculos que nos foram legados por nossa tradição, e da cor de suas lentes depende grande parte do que podemos ou não enxergar nas Escrituras.
  • Quem não conhece sua própria história não sabe por que é como é e, portanto, não tem a liberdade de ser de outro modo. Quem, ao contrário, começa a compreender por que é de certo modo começa também a descobrir a possibilidade de ser diferente.
  • Além disso, a filosofia foi a aia dada por Deus para conduzir os gentios a Cristo, do mesmo modo que Deus deu as Escrituras aos judeus com o mesmo propósito'^ Orígenes concorda com Clemente em tudo isso e, portanto, sustenta que sua tarefa como teólogo consiste em descobrir e manifestar a concordância entre a filosofia e a fé cristã.
  • Em termos gerais, a teologia de Tertuliano não olha para o futuro, a não ser para esperar dele o regresso à ordem original da criação, que se repetirá agora nas mansões celestiais. Em outras palavras, visto que o estado original era uma ordem perfeita, esse estado era o propósito final de Deus e tudo o que aconteceu desde então se deve ao pecado.
  • Esses três elementos: Deus como juiz e legislador, a criação como uma ordem perfeita e completa, e o pecado original como algo que herdamos, são as contribuições de Tertuliano para os temas que estudamos no presente capítulo. Seu impacto na história do pensamento cristão ocidental foi tamanho que, até os dias de hoje, a maioria de nós supõe que esse seja o único modo como o cristianismo ortodoxo pode abordar esses temas. No entanto, ao estudar os outros dois tipos de teologia, veremos que há outras perspectivas, particularmente no tipo C, que podem ser muito úteis em nossos esforços para entender a mensagem da Bíblia e relacioná-la com nossa situação presente.
  • Nossas palavras não podem descrever Deus, nem mesmo se aproximar de tal descrição; portanto, o único modo de se falar da divindade é dizer aquilo o que Deus não é: Deus não é mortal, não é finito, não tem limite, não sofre mudança. Ou, usando a linguagem teológica mais tradicional, Deus é imortal, infinito, ilimitado, impassível, etc.
  • É melhor, portanto, [...] não ter conhecimento algum sobre a razão pela qual uma única criatura foi feita, mas crer em Deus e andar em seu amor. Isso é melhor do que inflar-se com tal conhecimento e perder o amor que é a própria vida do ser humano.
  • não é como Deus criou o mundo, mas o fato fundamental de que o mundo todo é criação de Deus.
  • Em suma o ser humano foi criado bom —^mas não no sentido de que estivesse completo e terminado, e sim porque o Verbo encarnado serviu de modelo para sua criação. Nossos primeiros pais tinham a capacidade de crescer e, assim, de se parecer cada vez mais com o Verbo, até que finalmente pudessem desfrutar de comunhão íntima com o Criador^’.
  • ́ possível dizer que a história do pensamento cristão é a história da interpretação bíblica. Depois de estudar o uso das Escrituras em cada um de nossos três tipos de teologia, o leitor poderá voltar ao que dissemos anteriormente sobre diversas doutrinas, como a criação, o pecado original, a igreja, etc., e ver de que forma elas se relacionam com a interpretação bíblica de cada um de nossos teólogos.
  • Justamente aqui se encontra o ponto fraco da interpretação alegórica: como é o intérprete que determina o simbolismo que deve ser achado nas Escrituras, o próprio intérprete também determina, por meio de sua própria seleção de símbolos, o que a Escritura deve dizer. Tal interpretação se assemelha ao mágico que introduz um coelho na cartola sem que ninguém o veja, para depois o tirar em meio ao assombro e admiração de todos. Quando se chega a esse ponto, o texto bíblico é reduzido à categoria de espelho no qual o intérprete enxerga sua própria imagem. Eis aí a razão pela qual o filósofo Orígenes encontra na Bíblia uma mensagem muito parecida com os ensinamentos dos filósofos platônicos’‘^
  • Deus vem levando seu povo para a consumação final. Por conseguinte, há progresso nas Escrituras. A Bíblia não é uma série de verdades eternas, pronunciadas do alto por Deus, mas sim o testemunho de como a Palavra — o Verbo — de Deus vem dirigindo a humanidade a cada passo.
  • Um tema vai se repetindo em diversos fatos em diferentes épocas,
  • justamente porque a história humana é uma única história, mas, ao mesmo tempo, vai variando porque a história vai avançando e os propósitos de Deus vão se cumprindo.
  • O que é bom para a sociedade não é decidido por uma elite filosófica ou intelectual, mas foi determinado pela vontade de Deus.
  • Essa é a tarefa da teologia apologética. A teologia do tipo B é essencialmente apologética. Tanto Clemente quanto Orígenes escreveram obras importantes dirigidas a pessoas cultas que des prezavam a fé cristã com o propósito de mostrar-lhes que estavam erradas, já que o cristianismo era a “verdadeira filosofia”. Até mesmo os escritos de Clemente e de Orígenes que não são apologéticos em sentido estrito têm as mesmas características, pois neles vemos a fé tentando convencer a si mesma de que é intelectualmente respeitável — razão pela qual poderíamos chamar de “apologética interna” esse tipo de teologia.
  • A ponte apologética que numa direção pode conduzir os incrédulos à fé também pode ser transitada no sentido contrário e levar os crentes à apostasia!
  • Depois da conversão de Constantino, e conforme o império e a igreja foram se combinando, foi fortíssima a pressão em favor dos dois primeiros tipos de teologia (A e B) e contra o terceiro (C). Em geral, tal pressão não era explícita nem consciente. Mas, a partir de suas perspectivas sociais e econômicas, os poderosos procuravam uma versão do evangelho que fosse compatível com seus privilégios e com seu poder. Mesmo entre os que não eram poderosos, houve uma forte tendência a se alegrar porque o Império agora estava disposto a aceitar o que até pouco tempo antes era a fé de uma minoria débil e perseguida — mesmo que essa aceitação exigisse uma certa reinterpretação e adaptação da fé cristã.
  • Como alguém já disse, “o movimento cristão era revolucionário, não porque tivesse o pessoal e os recur sos para entrar em guerra contra as leis do Império Romano, mas porque criava um grupo social que produzia suas próprias leis e seus próprios padrões de comportamento”’.
  • as perspectivas e os interesses políticos e sociais se revestem de posturas teológicas e filosóficas.
  • A iniciativa cabe à graça. A graça atua antes de nós e, depois, coopera conosco. Por isso se disse com toda a razão que, de acordo com Agostinho, a salvação é por graça.
  • Em 1300, Bonifácio VIII ofereceu indulgência plenária aos peregrinos que fossem a Roma por ocasião do jubileu daquele ano. Já nessa época, as indulgências começavam a perder seu caráter comutativo, tomando -se, antes, uma simples absolvição que a igreja concedia aplicando o tesouro dos méritos ao pecador que recebia a indulgência®. A partir de então, as indulgências continuaram a ser concedidas em troca de donativos, e daí surgiu a prática de vendê-las contra a qual os reformadores do século XVI protestaram.
  • coube a Lutero viver num tempo em que a autoridade da igreja começara a se deteriorar. Não foi ele que destruiu essa autoridade, mas a dúvida sobre essa autoridade, dúvida que já estava na atmosfera, foi o que o obrigou a procurar em outro lugar a segurança de sua própria salvação.
  • A Palavra de Deus é Deus mesmo em sua ação criadora e redentora. Quando Deus fala, essa Palavra já é ação divina, como se pode ver tanto no Gênesis quanto no prólogo do Quarto evangelho. A Palavra de Deus não nos dá meras informações, mas é um poder que cria novas realidades. Jesus é Palavra de Deus porque nele Deus fala e age; porque ele é Deus atuando em favor de nossa salvação. A Bíblia é Palavra de Deus não porque seja uma legislação infalível, ou um manual de verdades filosóficas, mas porque nela nos encontramos com Jesus Cristo, que é a Palavra viva de Deus. Essa é a Palavra que vence todos os poderes do mal. Ele é a Palavra que é a ação criadora e libertadora de Deus.
  • Para o reformador, o batismo não é apenas o começo da vida cristã, a lavagem dos pecados anteriores à administração do rito. Ao contrário, o batismo é o signo sob o qual acontece toda a vida cristã'*. O fato de ser batizado, assim como o de ser justificado, não é simplesmente algo que ocorreu no passado, de forma que agora seja preciso se virar sozinho. O batismo é válido ao longo de toda a vida, porque nele morremos e somos ressuscitados com Cristo. Quem vê o valor do batismo unicamente com respeito ao pecado passado não percebe toda a sua importância. O batismo, assim como o nascimento, é parte de toda a vida. Não é necessário dizer que, desta perspectiva, em marcante contraste com a teologia do tipo A, os pecados pós-batismais não representam um problema maior do que os cometidos antes do batismo e que, portanto, não há espaço para o sistema penitencial nem necessidade dele.
  • O movimento missionário teve êxito. E é justamente porque teve êxito e há agora igrejas estabelecidas em quase todos os cantos da terra que é necessário procurar novos padrões para a missão.
  • os metodistas estão preocupados porque seu crescimento não ultrapassa os 5% ao ano. Enquanto isso, em toda a superfície do globo surgiram igrejas autóctones, muitas delas com uma taxa de crescimento surpreendente.
  • Tanto nessas novas igrejas quanto nos velhos centros do Atlântico Norte, todas essas circunstâncias levaram muitos cristãos a se interessar uma vez mais pela vida da igreja em seus primeiros séculos, quando ela não tinha nem esperava apoio algum por parte do Estado, da sociedade ou da cultura circundante. Assim, por exemplo, os cristãos de hoje se perguntam como comunicar os valores e as tradições de sua fé às novas gerações em meio a uma sociedade em que já não se pode contar com o apoio de antes — quando, por exemplo, a Bíblia era estudada nas escolas. Do mesmo modo, outros cristãos examinam o culto e a vida da igreja nos primeiros séculos, para ver que pistas para este século XXI há neles. E, como espero mostrar mais à frente, tudo isso também criou entre os cristãos uma maior abertura para formulações teológicas do tipo C — tipo que dominou a vida da igreja nos primeiros séculos e começou a declinar justa mente com o início da era constantiniana.
  • cada vez maior o número de crentes que se encontram em situações semelhantes às que existiam antes de Constantino. O mero fato de se chamar de cristão ou de ser líder da igreja não representa mais um motivo de respeito como era antes. A igreja não pode contar mais com a escola pública ou os costumes da sociedade para transmitir os valores cristãos e inculcar nas novas gerações uma visão cristã da vida e do mundo. É cada vez maior o número de cristãos que vivenciam uma forte tensão entre suas convicções e as realidades do mercado e do trabalho. Muitos simplesmente se dão por vencidos ou decidem que sua fé é uma questão privada e interna, que pouco tem a ver com sua vida social e econômica. Mas outros continuam se confrontando com essa tensão e atingem, assim, uma visão mais profunda de sua fé cristã
  • Quando os teólogos da libertação se referem ao racismo, ao sexismo ou ao neocolonialismo, não estão se referindo apenas à soma das atitudes dos racistas, sexistas ou neo- colonizadores. Referem-se a tudo isso como manifestação do Mal, com inicial maiúscula — o Mal cujo funcionamento nem sempre é misterioso, mas cujo poder sem dúvida o é.
  • Tanto os historiadores da liturgia quanto os da teologia sabem há muito tempo que existe uma relação estreita entre o culto e a doutrina, entre o modo como a igreja adora — lex orandi — e o que a igreja crê — lex credendi. A adoração expressa as crenças, mas também as afeta.
  • Tanto o batismo quanto a eucaristia sugerem agora uma visão que combina a alegria da fé cristã com um reconhecimento sóbrio do poder do mal, de que a ordem presente não é o reino de Deus, de que os cristãos ainda são conclamados a lutar em um mundo que ao contrário do que se podia pensar durante a era constantiniana  ainda é hostil à mensagem do evangelho. Regozijamo-nos com Cristo, porque ele ressuscitou; e com ele sofremos, porque ainda não retornou.
  • Quem entende a fé cristã em termos de lei, dívida e paga mento não verá muito valor numa celebração da “festa alegre do povo de Deus”, a não ser que suas próprias perspectivas teológicas sejam transformadas.
  • E quanto ao médico que se queixava de que, em meio às decisões sem precedentes que tinha de tomar, nem o fundamentalismo aprendido na escola dominical nem o liberalismo aprendido na universidade tinham grande serventia para ele? Sua perplexidade se deve à ausência de pontes entre sua fé e um mundo no qual constantemente tem de se deparar com as maravilhas das novas tecnologias e a possibilidade de abusar delas. Talvez o ajudasse uma perspectiva teológica que lhe permitisse ver a ação de Deus na história e nos avanços tecnológicos, sem perder de vista a dimensão demoníaca sempre presente na história humana — inclusive na tecnologia.
  • A medida que as chamadas teologias “contextuais” vão se multiplicando e desenvolvendo, vai ficando cada vez mais claro que toda teologia é contextuai e que, portanto, nenhuma tem o direito de se considerar universal.




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